(por João Lemes) Queridos leitores e amigos. Este é um ensaio filosófico muito forte. Um artigo que também mistura conhecimentos sobre neurociência e outros campos. Talvez a leitura não seja aconselhável para muitas pessoas. (Jornalista, escritor, mestre em Educação e doutorando).
Quando perdi meu pai, eu tinha uns 4 anos. Com aquele baque, precisei sair pelo mundo à procura da sobrevivência e de respostas. Ele era religioso, devoto, correto. Que Deus perverso iria levá-lo de nós, de seus oito filhos e de uma esposa amada? Lógico, minha mente infantil não poderia compreender. Então, pensei: deixa que no dia em que eu for "alguém", terei a resposta.
Depois da perda de meu pai, tive que passar a “infância” com uma família religiosa, porém muito má. Ela era má. A minha tia. Meu tio (irmão de minha mãe) foi um santo homem. Apesar disso, sofri muito naquela casa, levando a culpa e sendo castigado pela morte de três filhos que o tal Deus havia tirado da minha tia-madrasta.
Assim, ao longo da vida, vi tanta maldade em nome de Deus, em nome dos costumes, da tradição, dos valores morais, que até quase cansei da vida. Depois de ser pai, por muitas vezes tentei reproduzir a tal tradição com os meus filhos. Reproduzir uma austeridade que herdei. A tradição da família correta, de caráter e temente a Deus, a qual não admitia nada fora do trilho.
Após mergulhar no campo educacional, passando pela Filosofia e com estudos neurocientíficos, comecei a ver tudo mais claro. Ver que as pessoas, o mundo, não tinham culpa pelo meu passado. Vi que, ao seguir naquele pensar, cometeria os mesmos erros da minha tia. Uma submissa ao meu tio que descontava em mim as frustrações. O mundo está cheio de gente assim. Reprodutores de violência. Sofreu, bateu! Recebeu, devolveu! Aqui se faz, aqui se paga.
Pela Filosofia, compreendi o quanto sou miúdo, ínfimo perante a força do acaso, única verdade universal. Vi que 99,9% das coisas ocorrem sem ou contra minha vontade. Percebi que meu conhecimento é uma ilha, como disse o físico Marcelo Gleiser. Quanto mais avanço, mais essa ilha cresce, todavia, mais vejo o quanto o oceano é grande.
Apesar de me ver como uma pessoa melhor, percebo o quanto sou falho, malévolo, medíocre e fraco. Tudo isso em meio a turbilhões de sentimentos que me castigam e me doem mais que a chibata da minha tia. Então, há anos venho pesquisando o que mais me intriga: por que existe sofrimento?
O filósofo alemão Friedrich Nietzsche, certa vez indagou sobre o sofrer. Que sentido a vida tem? O filósofo observa que tudo é mudança no universo. Como a vida é parte deste mundo, ela também sofre mudança. Portanto, não há fundamento, muito menos metafísica, santos, deuses etc.
O francês Jean-Paul Sartre fez o mesmo. Disse que a vida não tem sentido. Albert Camus também enveredou por esse viés. Disse que a vida é um castigo. Ela é como um trabalho árduo e inútil que deve ser feito repetida e eternamente, numa alusão ao mito de Sísifo. Pelo que analisei, os três concluíram que não devemos tentar achar esse sentido. Simplesmente porque ele não existe. Mas então, somos frutos do acaso? Como disse Saramago, o nobel português: somos a matéria que criou consciência e que passou a indagar tudo.
O cineasta dinamarquês Lars von Trier é um desses intelectuais que fazem filmes para o mundo pensar. No filme Melancolia, Lars baseia-se no seu próprio sofrimento; a depressão, mal que ele diz ter desde criança, fazendo crer que é algo hereditário. Em uma entrevista à revista Veja, falou que a "depressão é o fim do mundo". Solta o verbo a respeito da criação e diz que a vida é uma ideia muito ruim e, se ela partiu de Deus, Ele tem culpa por tê-la largado na metade do caminho, sem uma conclusão lógica.
"Imagine uma criança que ganha um trem. Ele corre nos trilhos umas dez vezes, o menino se diverte, até que perde o interesse pelo brinquedo. O que acontece com o trem depois que é abandonado? Isso é a vida!", explica o cineasta.
E prossegue: "Se Deus criou a vida, criou seres conscientes de que cada passo deles causa o sofrimento de outro. Seres sabedores de que sua existência é finita; uma sentença de morte. Se eu fosse um bicho, com o único propósito de viver para comer e procriar, talvez a vida fosse tolerável. Mas assim, desse jeito, não é justa. Caso antes de nascer eu fosse consultado se eu queria existir, diria não. Mil vezes, não."
Pela ótica desse entendimento, penso: oxalá fôssemos irracionais como os outros bichos. Não sofreríamos tanto - se bem que até os outros animais estão adquirindo consciência - (isso será tema de outro artigo).
Quando falo que somos matéria pensante, como ensinou Saramago, remeto-me a Paulo Freire. Somos seres inacabados. Eu, aqui com meus botões, quero tentar crer que somos apenas cérebro, isso é, memória e consciência. Assim posto, acredito que jamais viraremos máquinas, pois faltará nelas a consciência. A memória e tantos outros artifícios já foram criados. A consciência humana, não!
Nossa identidade está presa à memória, ao cérebro e esse conjunto vive aprisionado num corpo falível e finito que, aos poucos, se degrada até virar pó. Essa assertiva da memória nos leva a tentar entender por que nos apegarmos a objetos do passado, algo que nos traga alegria, angústia, nostalgia ou saudade... Ninguém sabe precisar o que sentimos ao contato com esses objetos. Em um estudo do neurocientista Pedro Calabrez, soube que existe uma palavra que define essas memórias. Seria "memento" - objeto guardado para lembrança -, como fotos de um ex-amor, velhos discos, perfumes e até roupas.
Quando esses objetos (ou lugares) são vistos, na realidade nós estamos com saudade das pessoas com quem vivemos, saudade de uma vida feliz ou saudade de nós mesmos. E é aconselhável que nos apegarmos a isso (de uma forma equilibrada) para alimentamos essas memórias. É deveras importante que elas não morram em nós, para que sigamos vivendo com saudade, alegria, nostalgia, com certa angústia, mas vivendo, pois o nosso dia a dia é todo composto de memória.
Embora o tempo seja sempre o mesmo para o universo, nós conseguimos fracioná-lo graças a uma grande habilidade. Sabe-se, entretanto, que esse tempo existente é só o presente. Estamos "presentes", isso é; "presos ao atual". Daí o futuro nos chega em forma de planejamento e suposições e, o passado, por meio da memória.
Agora, voltando a Deus e ao sofrimento. As duas coisas são antagônicas. Uma não se sustenta na outra. Por mais que me falem em livre-arbítrio, alma, pecado original, vidas passadas e futuras, nada compensa ou explica o sofrimento. Pior o sofrimento advindo da injustiça humana (até em nome de Deus). Sócrates afirmava; "é melhor sofrer uma injustiça do que causá-la". Sócrates esqueceu de nos mostrar que estamos sujeitos às duas coisas.
Já sobre a metafísica de Platão, penso algo que imagino ser (ou deveria ser) voz corrente. Queremos ser felizes hoje, aqui e agora. O paraíso e a vida eterna prometidos não me valem um níquel. A vida é uma só e precisa ser vivida com intensidade, liberdade e amor. A felicidade está no pensar, no projetar, no realizar(se) até o fim. Não importa quando esse fim venha. Aliás, o tempo de vida não me importa muito, mas sim, a sua qualidade.
Tá, mas e a felicidade? Ela mora mais no outro do que em mim. Ela está no amor refletido. Outro alemão, Friedrich Hegel, disse que só existimos se o outro tiver consciência disso. Então, por que aniquilamos milhões de vidas? Por que nos preocupamos com gênero, cor de pele, credos, bandeiras, pátrias e ideologias? Para poder odiar mais? Seria o ódio que nos mantem vivos por nos trazer um motivo (razão) para estarmos aqui? Não! Só odeia quem não conhece o amor, a começar por si próprio. Sócrates nos ensina o que vai de encontro ao ódio, de encontro ao mal, ao dizer que existe apenas um bem, o saber; existe apenas um mal, a ignorância.
Por fim, trago o maior dos ensinamentos de Nietzsche. Lendo esse cara, acreditei que não é preciso inventar deuses e mitos. Afinal, somos homens, "super-homens", para Nietzsche. É por isso que eu te convido para enxergamos o quanto somos inteligentes e capazes de nos reinventar. De fazer como a águia que troca de bico. Como a serpente que troca de escama. Precisamos nos voltar para dentro e nos encontramos. É preciso descobrir quem de fato somos. E aí vem a frase socrática "conhece-te."
Voltando a Nietzsche e à razão do sofrimento. Nem tudo está explicado, mas nem tudo está perdido. Sua filosofia diz que a pessoa que acredita na metafísica, no ser que nunca viu, enxerga por uma perspectiva de quem não ama essa vida. É necessário que se viva o sofrimento, que se viva as alegrias e prazeres com a mesma intensidade e amorosidade, sem subterfúgios metafísicos sob pena de tentarmos fugir para além deste mundo. Como vimos, são conceitos que servem para tomar o lugar da vida.
De fato; vamos pegar o mal que há lá dentro de nós e jogá-lo fora com nossas próprias mãos. Vamos aceitar que estamos em construção, que somos medíocres, narcisos, arrogantes e prepotentes. Aí começaremos a descobrir uma coisa óbvia e que talvez seja a única razão desta vida. Você pode fazer e deve fazer isso. Pelo menos deve tentar APRENDER A AMAR.
Para mim, Cristo foi um homem como qualquer mortal ou não sentiria o que disse ter sentido. Foi um dos mais sábios? Foi. Ele tentou nos ensinar o que é amor. E ele quase conseguiu... Quando essa sua lição começar a ser ministrada e administrada, enfim, aprendida, seremos de fato mestres dos nossos destinos. Veremos que o sofrimento poderá não diminuir, mas será muito mais fácil enfrentá-lo. Se cairmos no abismo, faremos como nas tragédias gregas e como Nietzsche ensinou; cairemos nele sorrindo, dançando e cantando. A vida é isso.